Novo estudo apresenta diretrizes e instrumentos para transformar metas climáticas em ações concretas e inclusivas
Por Beatriz Mattos e Maiara Folly*
O setor de energia é responsável por quase três quartos das emissões globais de gases de efeito estufa — a principal causa das mudanças climáticas. Para manter o aumento da temperatura global abaixo de 1,5°C, como previsto no Acordo de Paris, é urgente uma transformação profunda dos sistemas energéticos: substituir combustíveis fósseis por fontes renováveis e sustentáveis. No entanto, essa transição só será bem-sucedida se for justa. Ou seja, se alinhar os objetivos climáticos à redução das desigualdades e à promoção do desenvolvimento sustentável.
O conceito de transição justa tem ganhado visibilidade em fóruns multilaterais, como a Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima (UNFCCC) e o G20. Mas ainda sofre com a falta de clareza. Sem um entendimento comum e mecanismos de implementação concretos, corremos o risco de repetir erros do passado: políticas climáticas e ambientais que, apesar de bem-intencionadas, aprofundam desigualdades, ameaçam direitos e ignoram as realidades dos países em desenvolvimento.
É nesse contexto que propomos uma definição ampliada e baseada em direitos para orientar políticas de transição justa. Essa proposta parte de dois diagnósticos principais. O primeiro é que definições existentes, como os Princípios de Transições Energéticas Justas e Inclusivas adotados pelo G20 em 2024, embora importantes, não abrangem a complexidade do tema. O segundo é que, mesmo com avanços como o estabelecimento do Programa de Trabalho sobre Transição Justa (JTWP), ainda falta à UNFCCC um arcabouço coerente e instrumentos eficazes para construir consensos políticos e transformá-los em ação concreta.
O caminho passa, em primeiro lugar, por estabelecer os requisitos mínimos para que o processo de mudança para modelos econômicos de baixo carbono promova, também, a justiça social. Isso poderia ser alcançado, por exemplo, por meio de Princípios de Alto Nível sobre Transições Justas que, embora possam se inspirar nas diretrizes do G20, precisam ir além, preenchendo suas lacunas com base em acordos multilaterais previamente firmados pelos países.
Esses princípios devem incorporar uma série de elementos-chave. Entre eles estão a adoção de uma abordagem sistêmica, que envolva todas as esferas de governo e setores da sociedade; a erradicação da pobreza energética; e a promoção de diálogo social inclusivo, com participação ampla e representativa. Também são indispensáveis mecanismos de proteção social abrangentes; a integração de uma perspectiva interseccional nas políticas de transição e o respeito aos direitos humanos e ambientais, de povos indígenas e comunidades tradicionais.
Além disso, é fundamental assegurar o acesso a financiamento adequado; fomentar soluções tecnológicas sustentáveis; promover o crescimento econômico inclusivo; impulsionar a transformação do mercado de trabalho e reduzir desigualdades domésticas e entre países, em linha com o princípio das responsabilidades comuns porém diferenciadas, que orienta as negociações internacionais de clima.
Definir princípios comuns é importante para que os países possuam uma base mínima para desenvolver seus planos e políticas domésticas de transição, que considerem também suas especificidades nacionais e locais. Mas isso não basta. É preciso garantir também o financiamento para políticas e projetos de transição.
Por isso, sugerimos à UNFCCC a criação de um arranjo para apoiar a implementação de transições justas. Esse mecanismo funcionaria como um espaço de cooperação entre países em transição e provedores de recursos financeiros, tecnológicos e de capacitação. Seu objetivo seria garantir apoio político contínuo à promoção de transições justas, facilitar a mobilização de recursos financeiros e oferecer instrumentos técnicos e tecnológicos adaptáveis à realidade de cada país, especialmente os mais vulneráveis.
Esse seria um passo para que os princípios da transição justa deixem de ser apenas declarações de boas intenções e passem, de fato, a orientar políticas e projetos concretos, tanto em nível nacional quanto subnacional.
Para avançar nessa direção, é urgente reconhecer a necessidade de financiamento específico e adicional para apoiar transições justas, de forma complementar aos fundos já destinados à mitigação, adaptação e perdas e danos climáticos. O Roadmap de Baku a Belém para US$ 1,3 trilhão será apresentado em novembro em Belém. O documento representa uma oportunidade para reconhecer essa necessidade financeira e apontar caminhos concretos para que os países promovam a eliminação progressiva dos subsídios aos combustíveis fósseis, sobretudo aqueles que não contribuem para combater a pobreza energética.
Nesse sentido, torna-se fundamental diferenciar os subsídios que garantem acesso universal à energia limpa daqueles que perpetuam a dependência dos fósseis. Os primeiros devem ser preservados ou estimulados, enquanto os segundos devem ser eliminados até o fim desta década, em linha com o Artigo 2.1(c) do Acordo de Paris. Medidas complementares, como compromissos voluntários ou obrigatórios para destinar parte dos royalties e lucros do setor fóssil a iniciativas de transição justa, também podem acelerar esse processo.
A transição justa não se resume à energia limpa. É, antes de tudo, a transformação das estruturas econômicas e sociais que geram exclusão, pobreza e degradação ambiental. Isso requer reconhecer e garantir os direitos de povos indígenas, trabalhadores informais, comunidades tradicionais, mulheres, jovens e afrodescendentes — grupos que, frequentemente, são os mais impactados pela crise climática e os que menos se beneficiam das soluções propostas até aqui.
Priorizar a proteção de grupos vulnerabilizados exige coragem política, cooperação internacional e vontade de enfrentar os conflitos inerentes à transição. Mas é a única forma de garantir que a mudança para economias de baixo carbono não repita os padrões de injustiça do passado, e sim estabeleça um novo modelo de desenvolvimento: mais verde, mais justo e verdadeiramente sustentável.
Todas essas propostas estão detalhadas no policy brief “From the G20 to the UNFCCC: Pathways to Just and Inclusive Transitions”, recém-lançado pela Plataforma CIPÓ. Mais do que uma contribuição técnica, trata-se de um convite para que governos, sociedade civil e instituições financeiras construam consensos, mobilizem recursos e coloquem a justiça social e os direitos humanos no centro das decisões climáticas.
A Convenção da ONU sobre Mudança do Clima reúne as credenciais e a legitimidade necessárias para articular um consenso internacional em torno do tema. Durante a conferência preparatória para a COP30, realizada em Bonn, na Alemanha, entre os dias 16 e 26 de junho, os países aprovaram uma nota informal que reflete uma visão de transição justa que considera algumas das prioridades do Sul Global.
Entre elas, destaca-se o acesso universal à energia limpa e a garantia dos direitos de trabalhadores informais e de pessoas dedicadas à economia do cuidado. No entanto, principalmente devido à resistência de países do Norte Global, o texto ainda não avança na definição de mecanismos concretos para orientar e viabilizar essa transição na prática.
Nesse contexto, será fundamental que a diplomacia brasileira atue de forma construtiva para facilitar consensos que permitam fazer da COP30 um marco na corrida por transições justas — não apenas no plano conceitual, mas também em termos de resultados concretos, em sintonia com a ambição de realizar uma “COP da implementação”.
O tempo das promessas já passou. O futuro será justo — ou não será sustentável.
*Beatriz Mattos é coordenadora de pesquisa, e Maiara Folly é diretora-executiva da Plataforma CIPÓ